Tive uma tia avó, irmã da Vó que me cuidava quando minha mãe estava trabalhando (o que era quase sempre), que se chamava Orfila. Tia Orfila tinha uma deficiência física que a dificultava caminhar. De maneira muito hábil e surpreendente pra nós crianças, ela se deslocava pelo pequeno apartamento onde vivia com minha avó e tia Nair, uma das irmãs de minha mãe, usando um banquinho. (Tia Nair, uma “solteirona” muito brava no meu olhar de criança, merece um capítulo especial na história.) Tia Orfila se apoiava no banquinho da Tia Orfila, uma entidade na família. Não podia faltar nos raros deslocamentos da família e, confesso, muitos de nós, pequenos, treinamos o uso do banquinho por pura experimentação e curiosidade.
Tia Orfila me voltou à memória hoje quando me ouvi dando tchau pro âncora do jornal que estava assistindo. Minha tia se relacionava pessoalmente com as pessoas que via na televisão, sua única experiência de socialização. Hoje posso entender que deve ter sofrido paralisia cerebral no parto e que a sequela mental, que conhecíamos como debilidade mental, tinha sido grave. Tia Orfila se relacionava mal com a realidade e totalmente com a virtualidade. Custava a entender que o Fúlvio Stephanini, que havia morrido tragicamente na novela anterior, aparecia vivo e transformado na história seguinte. De alguma maneira, absorvia rapidamente a incongruência, talvez porque amasse o Fúlvio.
Tia Orfila não teria problemas em se adaptar à pandemia. Vivia confinada em casa, dependendo dos cuidados misericordiosos de sua irmã e de seus sobrinhos mais bem-sucedidos. Passava os dias assistindo televisão e vivendo amores vicários. Conversava com aqueles que falavam com ela através da tela onipresente, que não a discriminavam pela sua deficiência porque não sabiam dela. Estava à frente de seu tempo, uma perfeita habitante de nosso mundo atual.
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